Max Dias
Historiador, jornalista, professor do IFES Campus Linhares e Doutor em História
Publicado por: Max Dias Em: Colunistas No dia: 13 de julho de 2020
A cidadania: do “homem bom” ao “engenheiro civil”
A restrição à cidadania no Brasil é um projeto bem-sucedido e de longa data (remonta à colonização). Se os portugueses fossem nos indenizar por cada “homem bom”, “cidadão de bem” e “engenheiro civil, formado” nessa terra, o Brasil alcançaria rapidamente o posto de potência econômica mundial.
Enquanto parte do Império português o Brasil assimilou um tipo de sociedade cuja cidadania, em seu ato inaugural, se mensurava pelo prestígio social do indivíduo baseado em riquezas e sua fidelidade à coroa nos negócios ultramarinos. Esses “homens bons” operavam a política e a justiça numa terra distante da sede imperial, mandavam e desmandavam, permitiam viver ou deixavam morrer em decorrência da sua posição perante os demais. Não por acaso sua estatura social garantia o exercício do poder tendo em suas mãos a lei e uma moral. Mulheres, negros e índios foram as principais vítimas desses “cidadãos de bem” do passado.
Se durante 21 anos a ditadura militar fez valer os termos coloniais do “homem bom” (impondo detenção e morte aos seus adversários), após 1988 a cidadania tomou forma de lei numa carta constitucional. A chamada Constituição Cidadã conseguiu estabelecer marcos avançados para os direitos sociais e políticos. De acordo com José Murilo de Carvalho a nova Carta Magna eliminou muitos dos obstáculos à universalização do voto. Aos analfabetos, por exemplo, o voto tornou-se facultativo. Porém não aos analfabetos políticos. Esses continuam distribuindo amostras grátis de sua burrice por aí, estufando o peito, orgulhosos, dizendo: “cidadão não! Engenheiro civil, formado, melhor do que você”. Parte das explicações para a compreensão de uma fala como essa tem sua origem num Brasil de outra época.
O bacharelado brasileiro consistiu, historicamente, como uma espécie de casta a ocupar os lugares de destaque na burocracia administrativa. Os filhos dos donos de terras e dos mercadores alcançavam maior distinção ao retornarem da Europa sustentando o título de “doutor”. Não bastasse sua posição social, após a formação universitária o bacharel alcançava um patamar de diferenciação. Era como se o mérito acadêmico o tornasse melhor. Na prática os estudos possibilitavam, tal qual na antiguidade grega, o exercício do ócio e da política, contrastando com a maioria escrava dedicada ao trabalho penoso na terra. Tamanha desigualdade social e educacional perpetuou falas ouvidas até hoje, do tipo “sabe com quem você está falando?” ou “a gente paga você, filho!” e, por pouco, não fez de Flávio Graça, doutor em Medicina Veterinária, fiscal da Vigilância Sanitária do Rio de Janeiro, sua mais nova vítima. Talvez se ele fosse “só mais um Silva” o seu destino seria inglório.
Demitidos após o episódio os engenheiros consideram que foram mal interpretados e não se arrependeram do feito. Talvez se o “engenheiro civil, formado”, estivesse com sua trena moral ele saberia medir a si próprio.