Em: Internacional No dia: 29 de janeiro de 2021
A Colômbia iniciou nesta quinta-feira, 28, um capítulo histórico: pela primeira vez, o tribunal que surgiu do acordo de paz acusou a dissolvida guerrilha das ex-Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) de crimes de guerra e contra a humanidade relacionados a mais de 21 mil sequestros. O juiz especial de paz acusou oito então comandantes das ex-Farc. Esta é a primeira decisão judicial desse tipo após a assinatura do acordo de paz em 2016.
A decisão envolve a liderança das ex-Farc: Rodrigo Londoño Echeverry, que lidera o partido político criado após a assinatura do acordo de paz; os congressistas Julián Gallo e Pablo Catatumbo e outros ex-líderes como o pastor Alape, Milton de Jesús Toncel, Juan Ermilo Cabrera, Jaime Alberto Parra e Rodrigo Granda Escobar.
“A Câmara de Reconhecimento do JEP (Jurisdição Especial para a Paz) estabeleceu a responsabilidade dos ex-membros do Secretariado das Farc pelas ordens de sequestro que deram, bem como pelo fracasso em controlar os maus tratos sofridos pelas vítimas”, disse a agência em um comunicado.
As lideranças das extintas Farc terão um prazo de 30 dias para responder à decisão e se houver reconhecimento dos fatos e da verdade, terão pena alternativa que será determinada de comum acordo com as vítimas. Se a Justiça especial descobrir que os ex-rebeldes estão escondendo fatos, no entanto, eles podem ir para a prisão.
O tribunal também acusou os ex-líderes da guerrilha de “outros crimes de guerra relacionados ao tratamento de reféns, como assassinato, tortura, tratamento cruel, ataques à dignidade pessoal, violência sexual e deslocamento forçado”. De acordo com o documento de denúncia, entre 1990 e 2016 os guerrilheiros sequestraram 21.396 pessoas, “um número bem superior ao conhecido até agora”.
A decisão mais importante tomada pelo JEP desde a sua criação surge depois de a Justiça ouvir as versões de 257 ex-combatentes e confrontá-las com as de mais de mil vítimas de sequestro e relatórios do Ministério Público, entre outros.
Para John Jairo Hoyos, filho de um deputado sequestrado em 2002 e assassinado pelas Farc, foi uma “decisão excelente”. “Dá esperança de que possamos encontrar a paz neste país algum dia, de que se cumpra o princípio da não repetição, e de que aqueles a quem foi dada a oportunidade de se reintegrar à vida civil cumpram suas obrigações estabelecidas no acordo de paz”, disse à Agência de notícias AFP.
Arrependimento
Os réus pertenciam à secretaria das Farc, o órgão máximo de decisão da organização. O partido, agora de esquerda, se declarou arrependido, comprometido com a paz e garantiu que avaliará o documento de acusação para se posicionar sobre o assunto.
O presidente conservador Iván Duque, que em 2018 liderou uma frustrada iniciativa que buscava modificar os acordos para endurecer as sanções contra os ex-guerrilheiros, falou indiretamente sobre a decisão. “Não podemos ter dois pesos e duas medidas na Colômbia, onde os cidadãos que cometem crimes, qualquer pessoa, nunca, jamais poderão aspirar a ser deputados e outros ocupam seus cargos com condenações por crimes contra a humanidade”, reclamou.
O general reformado Luis Mendieta, que esteve por 11 anos em poder dos antigos rebeldes, declarou que, “enquanto não houver reparação, não haverá justiça”, e pediu “garantias de não repetição”.
Penas alternativas
Durante sua longa e malsucedida luta pelo poder, as Farc recorreram ao sequestro de pessoas para fins econômicos e políticos. Em julho de 2018, os líderes rebeldes começaram a responder individualmente ao JEP por este crime, um dos mais condenados pelos colombianos. Em diversas ocasiões, pediram desculpas às vítimas e asseguraram que assumiriam as responsabilidades.
Milhares de reféns, incluindo militares, policiais e líderes como a franco-colombiana Ingrid Betancourt, foram mantidos por até dez anos nas profundezas da selva antes de serem resgatados ou libertados. Segundo o JEP, quase 12% dos raptados estão desaparecidos ou foram mortos.
Os ex-combatentes que aceitarem a responsabilidade por esses crimes terão uma pena alternativa à prisão. Aqueles que não o fizerem enfrentarão um julgamento criminal com penas de até 20 anos.
Ao longo de quase seis décadas, o conflito armado colombiano deixou mais de nove milhões de vítimas, incluindo mortos, desaparecidos e deslocados.
Em setembro de 2020, as extintas Farc reconheceram publicamente o sequestro e pediram desculpas às vítimas. Na quinta-feira, após saber da decisão do JEP de indiciá-los por este crime, o agora partido político manifestou o seu compromisso de ser responsabilizado perante a justiça. “Como já dissemos, o sequestro foi uma prática da qual só podemos lamentar, sabemos que não há razão ou justificativa para tirar a liberdade de qualquer pessoa”, disse a organização em suas redes sociais. (Com agências internacionais).