Em: Variedades No dia: 1 de dezembro de 2020
Fotografias coloridas à mão, conhecidas como fotopinturas, são centrais na produção do goiano Dalton Paula, de 38 anos, que acaba de alcançar um feito nada trivial para um artista em ascensão: seis de seus trabalhos feitos com tal técnica foram incorporados ao acervo do MoMA (Museum of Modern Art), em Nova York.
A essa tradição de retratos, Dalton imprimiu uma estética própria, buscando homenagear grandes personalidades negras do passado. Considerando as simbologias envolvidas na ancestralidade, o artista parte da ideia de que essas figuras históricas se fazem presentes ainda hoje. Assim, ele frequenta quilombos de Goiás e fotografa lideranças atuais, tomando suas feições como base para as representações das antigas gerações. “Me interessei muito pela fotopintura porque possibilita um lugar de desejo; que as pessoas possam estar onde querem, não num lugar imposto socialmente”, explica o artista.
No passado, tais retratos eram um recurso para guardar um registro de um familiar morto, por exemplo, em uma espécie de “dilatamento do tempo”. Muitas pessoas também aproveitavam a possibilidade de intervenção manual na fotografia para que fossem retratadas bem vestidas, com joias e cabelos arrumados. Desse modo, os retratos produzidos pelo artista (com óleo e folha de ouro sobre tela) buscam mudar as representações mais estereotipadas dos negros, conferindo-lhe a devida dignidade. Entre as figuras homenageados por ele, estão nomes como Chico Rei, Chica da Silva, Luiza Mahin e João Candido.
Ao fotografar as lideranças dos quilombos, Dalton estabelece como acordo dar a elas um valor simbólico. Diante da pandemia, além de reproduções das pinturas, ele doou cestos de alimentos a cada um dos retratados, considerando as dificuldades do contexto. Foi nesse sentido, principalmente, que o momento de crise sanitária impactou o seu trabalho: “Como profissional, tenho de respeitar o isolamento dos quilombos. Agora, basicamente, estou trabalhando com um pouco de arquivo que ainda tenho, mas muito sensibilizado com a situação que o nosso País está vivendo.”
Aliás, foi dessa relação próxima com as comunidades – em conversa com uma quilombola que manifestou o desejo de ter imagens daqueles que já partiram – que surgiu a ideia de “sobrepor” as gerações nas fotopinturas. “É por isso que me considero um instrumento: está tudo aí; basta ter olhos e ouvidos atentos”, comenta o artista. “Tenho algumas facilidades, alguns privilégios, porque muitas pessoas passaram antes por situações de sangue, suor e lágrimas derramados. Agora, estou fazendo minha parte. Preciso deixar minha contribuição para as novas gerações”, acrescenta.
‘Cura’
Se o interesse de Dalton pelo desenho e pela pintura o acompanha desde jovem, quando usava papel-carbono para reproduzir mangás, sua estética começou a se delinear mais fortemente quando passou a exercer uma profissão distante desse universo. Em 2004, buscando garantir seu sustento, entrou para o Corpo de Bombeiros, mantendo a prática artística em paralelo. Assim como resgatava pessoas acidentadas naquela atividade, percebeu que, em sua produção, estava imbuído de uma missão semelhante. Para enfermidades sociais como o “silenciamento” de corpos negros, o artista busca curas simbólicas, caso do que propõe em suas fotopinturas.
Dalton é representado pela Sé Galeria, de São Paulo, onde expôs pela primeira vez em 2014. O divisor de águas em sua carreira ocorreu em 2016, ano em que foi convidado a participar da Bienal de São Paulo e teve todas as suas obras vendidas na SP- Arte (principal feira brasileira da área).
“Foi como se tivesse uma voz me perguntando: ‘o que você quer mais para que a gente te prove que o seu caminho é esse’?”, relembra o artista, que pôde, então, abdicar de suas funções como bombeiro. Em 2018, ele integraria ainda a 11ª Bienal do Mercosul e a grande exposição Histórias Afro-Atlânticas, do Masp, com duas obras que hoje estão no acervo do museu – Zeferina e João de Deus Nascimento.
Com o êxito conquistado desde então, Dalton passou a ser representado também por uma galeria internacional, a Alexander and Bonin, de Nova York, onde estava com uma exposição em cartaz até o mês de outubro. As obras exibidas na mostra, entretanto, já haviam sido vendidas antes mesmo de sua inauguração: ao chegar à cidade americana, em fevereiro, curadores e colecionadores já entravam em contato com a galeria manifestando interesse pelos retratos de Dalton, que ainda estavam em fase de produção.
Em meio a isso tudo, o artista precisou lidar com a notícia do avanço do coronavírus pelo mundo. “Muitos brasileiros foram retornando ao Brasil, perguntavam se eu não voltaria, mas eu sabia muito bem o que tinha ido fazer lá. Não queria perder aquela oportunidade e até comentei com a minha galerista que eu estava sentindo que algo muito legal aconteceria”, relata Dalton.
Sua aposta foi certeira: entre os interessados por suas obras, estavam colecionadores do board do MoMA, que compravam, por exemplo, dois trabalhos e doavam um para a instituição. “Nem conseguia acreditar; minha galerista dizia: nada mal, isso não é muito fácil de acontecer na primeira exposição”. Retratos de nomes como alufá Rufino (ex-escravizado que teve sua história contada em livro), Zacimba Gaba (princesa angolana escravizada que lutou por seu povo) e Zumbi dos Palmares figuram agora no acervo do museu.
Conquista de espaço
Dalton avalia que a pressão exercida pelos movimentos sociais possibilitou que os espaços institucionais passassem a valorizar mais, nos últimos tempos, o tema da diversidade. “Há 20, 30 anos, não se tinha o número de artistas e curadores negros que se tem hoje nesses lugares”, comenta. O artista, no entanto, considera que, embora seja um caminho inevitável, essa conquista demanda ainda um trabalho árduo, pois a “cordialidade em abrir as portas” não é por mera “generosidade” das instituições, mas fruto de intensa reivindicação.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.