Rede de advogadas dá assistência psicológica e jurídica a vítimas de abuso


Em: Geral No dia: 8 de novembro de 2020


Rosa se casou jovem, antes dos 18. No início, o marido não era agressivo, mas as coisas foram mudando. Se a dona de casa dizia “não” para o sexo, ele virava o bicho. Além de viciado em sexo, ficou mais violento, não parava quando ela pedia. Doía. Sangrava. “Marquei numa agenda um total de 62 vezes que fizemos sexo em um mês”. Quando ela ameaçava ir embora, ele dizia que ia se matar. A família do marido culpava Rosa. Por causa das tentativas de suicídio e da questão financeira, ela continuou morando junto. Tinha ainda a questão dos dois filhos. Foram 20 anos de casamento.

Rosa, nome fictício, procurou ajuda na internet. Achou. Um grupo formado por advogadas, médicas, psicólogas e assistentes sociais oferece ajuda para mulheres vítimas de violência doméstica. São as Justiceiras, voluntárias que não cobram nada pelo apoio. No caso de Rosa, vítima de estupro conjugal, um dos principais tipos de violência. Muitas vezes, as mulheres nem reconhecem a situação. “Cada vez que me lembro me dá uma dor no peito. Não sei se é raiva ou ódio de mim de ter deixado aquilo acontecer”, diz a dona de casa. Hoje, Rosa está se separando.

Criada pela promotora de Justiça de São Paulo Gabriela Manssur e pela advogada Luciana Terra, a iniciativa já atendeu mais de 2,5 mil vítimas desde março, quando surgiu. O grupo se define como “força-tarefa pró-mulher que oferece orientação jurídica, psicológica, socioassistencial, médica, rede de apoio e acolhimento gratuito e online”. Mulheres em situação de violência enviam mensagem por Whatsapp, recebem um link de formulário e o grupo faz encaminhamentos. Cada caso é tratado individualmente por telefone ou mensagens de texto.

“Oferecemos um pronto-socorro, com todos os encaminhamentos, para a mulher se reerguer”, conta a advogada Luciana Terra, uma das lideranças nacionais do movimento. Redes de apoio online aumentam a oferta de serviços de acolhimento e acompanhamento para vítimas. No mesmo grupo de Whatsapp, há orientação emocional, jurídica e psicológica. São quatro mil voluntárias pelo País nas Justiceiras – eram 700 no início. São ações que complementam caminhos tradicionais, como delegacias especializadas e a Casa da Mulher.

Grupos virtuais de apoio, quase sempre conduzidos por gestoras femininas, criam um ambiente (ainda que virtual) de confiança e cumplicidade. São redes de mulheres que apoiam outras mulheres. É comum muitas evitarem espaços formais de denúncia por medo de constrangimentos em frente de um delegado ou juiz. Na opinião de Luciana, a presença das mulheres do outro lado da linha ou do mouse ajuda a entender porque 50% das vítimas que procuram apoio ali nunca haviam feito denúncia em nenhum outro meio. “Muitas vezes, as mulheres enfrentam uma peregrinação e têm de repetir várias vezes a mesma história triste”, diz ela.

E há cooperação. As Justiceiras atuam ao lado da Rede Feminista de Juristas (defemde), criada em 2016 para combater a violência baseada no gênero dentro e fora do Direito. O nome é mesmo com “m” para destacar a sílaba “fem”, de feminismo. Cerca de 180 advogadas e juristas pelo País se articulam por Whatsapp e dão apoio jurídico gratuito para temas ligados ao direito das mulheres.

A maior parte dos casos é de violência doméstica, que envolve aspectos psicológicos, morais, físicos, patrimoniais e sexuais dentro de relações. Pelo aplicativo de conversas instantâneas, as especialistas trocam tese sobre casos, compartilham pedidos de ajuda que vêm pelas redes sociais. Em 2020, o grupo tem recebido entre três e cinco pedidos por dia. “É preciso buscar um Direito feminista. Direito contra os homens? Não. É um Direito pela igualdade”, diz a advogada Isabela Del Monde, uma das líderes do movimento.

Caso Mari Ferrer

As representantes dos dois grupos trabalharam bastante nas últimas semanas. Uma das razões foi o julgamento do processo da influenciadora digital Mariana Ferrer, que relata ter sido dopada e estuprada no camarote de um beach club em Jurerê Internacional (SC) em dezembro de 2018. O caso ganhou repercussão após o site The Intercept Brasil divulgar vídeo da audiência, onde o advogado Claudio Gastão Filho insultou a jovem. O advogado também exibiu fotos sensuais feitas por ela antes do episódio, sem qualquer relação com o suposto crime, e a chama de “mentirosa”. A Justiça inocentou o empresário André Aranha de estupro. O juiz do caso, Rudson Marcos, e Gatão são investigados agora pela atuação na audiência.

Após o caso, as especialistas afirmam que a procura por ajuda cresceu. “O que aconteceu, infelizmente, é muito comum. Ter como ponto de partida que a vítima tende a estar mentindo é o que acontece no cotidiano dos órgãos de justiça criminal”, diz a advogada criminalista Maira Pinheiro, da Rede Feminista de Juristas. “Ninguém pergunta para uma vítima de roubo o que ela fez para contribuir para aquele desfecho. Na violência sexual, isso está sempre colocado. Isso interfere no modo como a mulher é recebida pelos órgãos de justiça”, completa.

As iniciativas nacionais se somam a ações internacionais. As advogadas Luciana Terra e Isabela Del Monde também coordenam o movimento MeToo Brasil, iniciativa mundial para amplificar a voz de mulheres que sofreram abuso sexual e outras violências. Inspirado e pelo movimento fundado por Tarana J. Burke nos Estados Unidos, a frente brasileira foi idealizada pela advogada Marina Ganzarolli. Quem procura o MeToo é encaminhado para a rede de voluntárias do Justiceiras.

“O site tem várias ofertas de ajuda. As pessoas podem fazer denúncias, relatar ou desabafar em lugar seguro, muitas vezes nunca falaram disso. Outras opções são procurar ajuda para encaminhar vítimas ou ser voluntária”, diz Isabela. “Está destinado para todas as pessoas. A violência sexual pode atingir homens, embora os casos aconteçam imensamente mais de homens contra mulheres”.

Melhorar assistência passa por mudança na educação e nas leis

As especialistas indicam propostas que podem iniciar uma mudança do cenário de busca pela igualdade de gênero. Há medidas que podem ser tomadas para proteger vítimas de hoje e outras que podem aperfeiçoar as relações no futuro. “Uma das ações fundamentais é a educação. É preciso educar filhos e filhas para romper o ciclo de violência que, muitas vezes, ocorre dentro de casa”, opina a advogada Luciana Terra.

Maira Pinheiro sugere novos procedimentos antes de a discussão chegar aos tribunais. Para ela, os problemas começam na etapa policial. “Os depoimentos não são registrados por recursos audiovisuais. O primeiro contato com o relato da vítima é documentado de forma precária. A gente não tem como saber o que foi perguntado nem de que forma foi perguntado”, opina. “Também não dá para saber o que foi respondido. Nesta etapa, trabalhamos com uma paráfrase das palavras da testemunha formulada a partir da perspectiva do policial civil que colhe aquele depoimento”.

Após a repercussão do caso Mariana Ferrer, a seccional catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sugeriu ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o estabelecimento da exigência de filmar todas as audiências judiciais, de forma a preservar os direitos das partes envolvidas no processo.

A advogada Isabela Del Monde aponta a necessidade de mudanças na legislação. “É preciso provocar nosso sistema de Justiça e o nosso Legislativo a colocar as questões de gênero em posição central. Não só a questão de gênero, mas também de raça. Há interseccionalidade. Quando olhamos os índices de violência, as mulheres negras são sempre as mais afetadas.”

Os insultos contra a influenciadora digital também mobilizaram a Câmara. Um grupo de deputadas propôs a Lei Mari Ferrer, que prevê punição para o que chamam de “violência institucional” sofrida por vítimas de estupro. Ao menos dois projetos foram apresentados. Em um deles, é prevista detenção por até um ano do agente público que não zelar pela integridade física e psicológica da vítima.

Já o Ministério Público de Santa Catarina enviou ao presidente Jair Bolsonaro sugestões para mudar os Códigos de Processo Penal e Penal para elevar a proteção à dignidade da vítima de crimes sexuais e vedar perguntas e referências à experiência sexual anterior da vítima, seu modo de ser, falar, vestir ou relacionar-se.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.