Em: Economia No dia: 20 de novembro de 2020
Na cartilha de Norberto Odebrecht, fundador de uma das maiores construtoras do Brasil, havia dois tipos de ética: o da consciência e o da responsabilidade. Essa última ele costumava explicar que era a “ética do sujeito que tem uma fatura de US$ 200 milhões e precisa do dinheiro para poder pagar 3 mil famílias”. Aí um funcionário público diz: “Se você deixar 10% comigo, eu te dou o resto. A ética da consciência diz: não dê. Mas a responsabilidade diz: dê. Eu olhava pela janela do canteiro e decidia dar”, diz Norberto.
O trecho acima faz parte do livro A Organização – A Odebrecht e o esquema de corrupção que chocou o mundo, escrito pela jornalista Malu Gaspar. Em 639 páginas, ela conta a ascensão e a queda do império do grupo baiano, criado em 1944 e que virou pivô da Operação Lava Jato, um dos maiores escândalos de corrupção do País.
Ao longo de três anos, Malu ouviu mais de 120 pessoas, entre executivos e familiares, delatores, concorrentes, políticos, advogados e investigadores. Segundo a jornalista, os fatos passaram por dupla ou tripla checagem em novas entrevistas, nas cerca de 200 horas de depoimentos gravados pelo Ministério Público ou pela Polícia Federal e em centenas de páginas de documentos. “Foi um processo difícil, trabalhoso e de grande responsabilidade para contar uma história dessa dimensão em off”, diz Malu.
O livro, disponível nas livrarias e na versão digital, é uma grande reportagem sobre a história da empresa e seu envolvimento com os diversos governos desde a sua fundação. Mas que isso: mostra como a relação entre a companhia e políticos quase sempre foi pautada por propinas chamadas pelos odebrechtianos – como Malu nomeia os executivos da empresa – como contribuição, ajuda, apoio ou suporte. Em 2013, a Odebrecht desembolsou US$ 730 milhões de caixa dois, relata o livro.
Para contar essas histórias, a jornalista faz um passeio pelas negociatas e obras mais importantes do Brasil, desde o Galeão, que alçou a construtora ao 13.º lugar no ranking das empreiteiras, passando pela Ferrovia Norte-Sul, Usina Nuclear Angra I, hidrelétricas do Madeira e Belo Monte até as plataformas da Petrobras e a Refinaria Abreu e Lima.
Em quase todas elas houve denúncias de corrupção ou entrevero com o governo e concorrentes. Quanto mais a carteira da Odebrecht crescia, maior era o volume de denúncias. Mas, até a Lava Jato, a empresa conseguiu escapar praticamente imune, pelo menos, sem nenhuma prisão de executivos. “O que mais me surpreendeu foi a forma natural como as operações eram tratadas e o tamanho que o departamento de operações estruturadas tomou (departamento de propinas da empresa)”, afirma a autora do livro.
Pai e filho
Apesar do início complicado para ser aceito na “elite” das empreiteiras, a Odebrecht não só conseguiu chegar ao topo como também passou a imprimir seu jeito de fazer negócios no setor, primeiro com Norberto e depois com Emílio e Marcelo. Aliás, a relação entre os três personagens principais da Odebrecht está descrita em quase todos os capítulos do livro. “Foi difícil mergulhar tão fundo na relação pai e filho sem se deixar levar pelos sentimentos”, diz Malu.
Embora tentasse evitar que sua relação com o pai Norberto se repetisse com Marcelo, Emílio não conseguia conter os ímpetos do primogênito, que tem o gênio difícil. Sucessor natural de Emílio, Marcelo sempre foi aplicado e dava prioridade total ao trabalho. Seu jeito de fazer negócio, no entanto, era bem diferente do jeito do pai. E sua paciência nas relações com os governos bem mais curta que a de Emílio, que gostava de colecionar ” amigos” no alto escalão.
Na verdade, Marcelo tinha pouco traquejo para cativar as pessoas e, por vezes, travou brigas com autoridades, como a queda de braço com Dilma Rousseff na disputa pelas hidrelétricas do Rio Madeira.
O pai tinha outro estilo. De acordo com o livro, Emílio gostava de comprar na baixa, ou seja, investir em alguém com potencial de crescer e depois colher os frutos dessa relação. Era dessa forma que ele se referia a Luiz Inácio Lula da Silva, que conheceu em 1985 por intermédio do então prefeito Mário Covas. Na época, o objetivo era aproximar os dois para tentar resolver as constantes ameaças de greves no Polo Petroquímico de Camaçari. Desse dia em diante, Emílio e Lula passaram a ter encontros recorrentes até o petista se tornar presidente da República. Na relação, muita troca de favores de ambos os lados, sendo um deles a construção do Itaquerão – estádio do Corinthians. O livro também relata o episódio da reforma do sítio de Atibaia, um pedido feito pela então primeira-dama, Marisa Letícia – um dos motivos que levaram o ex-presidente Lula para a prisão.
Para Malu, a história da família Odebrecht – que sempre almejou ser um dos maiores conglomerados do mundo – se confunde com a do próprio País. A impressão é que um definiu o rumo do outro, destaca a autora do livro.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.