Em: Variedades No dia: 1 de agosto de 2020
Lenny McLean teve uma infância difícil. Foi abusado pelo padrasto, cresceu forte, brigão e ressentido, tornou-se lutador de rua, mas seus maiores adversários eram os fantasmas do passado. Depois de ter se consagrado na versão mais truculenta do boxe, resolveu encarar a “nobre arte” mais a sério. Mais tarde, tornou-se ator e escritor. Essa vida proletária, essa trajetória tortuosa, cheia de pancadarias, quedas e voltas por cima, é descrita em Lenny sem Luvas (My Name is Lenny, no original), com direção de Ron Scalpello, tendo Josh Helman no papel de Lenny McLean. O filme já está disponível em plataformas de streaming (Now, Claro Video, Vivo Play, Apple TV, iTunes, Youtube Filmes e Google Play).
Para expressar essa história transtornada, Scalpello adota uma estética do exagero. Há muito sangue e pancada ao longo da trama. O próprio ator contribui para o tom over, fazendo um Lenny cheio de tiques e caretas, algo que chega a incomodar no início. Depois, nos acostumamos ao perceber que a ideia é mesmo traçar o retrato de um personagem cheio de transtornos psicológicos, uma força bruta da natureza, às vezes, ou quase sempre, sem direção. Em tal pintura, não cabem riscos suaves.
Lenny tem a violência dentro de si. Mas estranhamente (ou nem tanto, já que os seres humanos são complexos) vive um grande caso de amor com sua mulher, Valerie, ou Val (Chanel Cresswell). Ela tenta controlar a besta, muitas vezes sem sucesso. Lenny é forte demais, bebe em demasia e é viciado no jogo. É uma bomba, não prestes a explodir, mas que explode todo o tempo, ferindo a si mesmo e às pessoas que ama. Numa das cenas mais truculentas, ele quase provoca a morte de seu melhor amigo.
Também faz parte da estética do filme a incursão ao mundo imaginário de Lenny, sempre assombrado por figuras aterrorizadoras. A principal, o padrasto que o atormentou na infância e do qual guarda indelével recordação.
Na comparação com grandes filmes de boxe – Punhos de Campeão e Touro Indomável, por exemplo -, Lenny sem Luvas perde por nocaute. Funciona melhor quando pensamos nele como retrato do East End londrino e sua cultura proletária. Em seu bairro, Lenny é o valente do quarteirão, aquele que, em sua mente turva, protege os fracos e oprimidos dos outros valentões.
Tem esse lado de sujeito truculento, imprevisível e perigoso, mas dotado, lá no fundo, de bons sentimentos. O problema é encontrar esse núcleo do bem em meio a tantos ressentimentos, complexos e uma vida cheia de som e fúria. Val, a mulher, terá um papel importante nessa busca.
Por outro lado, o filme dá a entender que uma mente tão plugada na violência, como a de Lenny, só poderia mesmo encontrar alívio numa prática igualmente truculenta. Que lhe servisse de escape, alívio ou catarse, como se quiser. Através do boxe, Lenny se constrói precariamente. Mas é um caminho tortuoso, que o leva à beira do abismo e quase à destruição.
Como todo “herói”, Lenny também tem seu rival predileto, o lutador Roy Shaw (Michael Bisping). As batalhas entre os dois tornaram-se antológicas na mitologia do East End. Aos socos e golpes de todos os tipos (alguns não muito canônicos na ética do boxe), disputaram o título de “The Guvnor” – na gíria londrina, o maioral da zona, o chefe, o patrão, o que manda.
Com essa trajetória, Lenny tornou-se uma lenda, pouco conhecida entre nós. Há também um documentário sobre ele chamado justamente The Guvnor, dirigido por Paul van Carter.
Também é o título da autobiografia de Lenny, escrita com Peter Gerrard. Nela, Lenny conta ter participado de cerca de 4 mil lutas clandestinas em sua vida. Com 1,91 m de altura e 130 quilos, chegou a ser considerado o campeão peso-pesado não oficial da Inglaterra. Vários outros livros foram escritos sobre ele, incluindo um de autoria de sua mulher, Val, e outro de uma de suas filhas, Kelly. Trabalhou como ator no filme de Guy Ritchie, Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes.
Só por nos apresentar a personagem tão complexo e rico, o filme já vale.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.