Em: Geral No dia: 31 de outubro de 2020
Debora Machado de Souza ficou grávida do marido só depois que ele havia morrido. A confirmação da gestação veio no dia em que ele completaria 50 anos. As gêmeas nasceram um ano depois da partida dele, no mesmo mês do óbito. E elas são a cara do pai.
O sonho do casal, que foi levado adiante por ela só foi possível porque o sêmen de Marco Aurélio tinha sido congelado, uma medida para preservar a fertilidade diante do tratamento de câncer. Ele também deixou autorização para uso do material genético. “Eu fiz uma coisa por amor. Sei que ele ficou muito feliz”, conta a dona de casa de 31 anos, que recusa o título de “guerreira” que lhe deram pessoas que conhecem a história.
Tudo foi feito com planejamento, consciência e tendo as condições financeiras necessárias para criar Maria Alice e Maria Victoria. Mas também foi feito “por impulso”, no sentido de não saber se havia questões legais sobre a possibilidade de usar os gametas do marido após a morte dele. O único desejo era tornar reais as conversas que tinham sobre qual seria o nome do bebê e como fariam a festa de aniversário de 1 ano.
No Brasil, são raros os casos de reprodução assistida post mortem e não há legislação sobre o tema. O que existe é um projeto de lei (1.184/2003), sobre a utilização de gametas de maneira póstuma desde que haja aval prévio para isso. Mas o PL ainda aguarda parecer na CCJ da Câmara dos Deputados.
Por enquanto, a questão é tratada do ponto de vista médico, por resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), a mais recente de 2017 (nº 2.168), que afirma ser “permitida a reprodução assistida post-mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente”. “Desde a primeira resolução (de 2010), permite-se fazer técnica de reprodução assistida com a única exigência de ter um consentimento prévio, em vida, da pessoa a respeito do que fazer com embrião ou material congelado”, diz Hitomi Nakagawa, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida. Ela afirma que todas as clínicas de reprodução fornecem informações e termo de consentimento.
Procuração
“Foi por impulso, eu não sabia se podia ou não. Meu marido devia saber porque era advogado, tomava conta das partes burocráticas. Quando a médica disse que eu precisava da procuração, fui procurar nos documentos da clínica e estava lá no contrato. Ele tinha deixado (assinado) com firma reconhecida”, relata Débora.
O casal resolveu congelar o sêmen de Marco antes de ele iniciar a quimioterapia por causa de um câncer que havia começado no intestino e se espalhado para o fígado. Porque o tratamento seria mais agressivo, as chances de prejudicar a fertilidade eram altas, então o médico indicou a preservação dos gametas. Nos dois anos anteriores, Debora e o marido tinham tentado engravidar, até por uma fertilização in vitro que não progrediu.
Em novembro de 2017, o material genético dele foi coletado e congelado. No dia 27 daquele mês, a saúde do advogado piorou – ele morreu dia 8 de dezembro. “Eu só tinha essa certeza de que iria terminar o que a gente começou”, diz Debora. Ele dizia temer pela maternidade solo, ainda mais se viessem gêmeos. “Marco foi piorando e parou de falar. Dois dias antes (da morte), falei com ele: Eu vou usar o sêmen se acontecer algo contigo, vou dar continuidade ao que a gente queria. Ele sorriu e ali eu soube que ele queria também.”
A ginecologista Eleonora Leão Torres, especialista em reprodução assistida, foi quem conduziu o processo de fertilização in vitro de Debora. Ela explica sobre as condições para uso de gametas congelados. “No termo de consentimento que damos aos pacientes, tem essa parte do caso de falecimento de um dos membros, se a pessoa autoriza o outro a usar. Pode ser em caso de divórcio, doença crônica ou falecimento.”
Em outras situações, a pessoa que congela os gametas pode permitir a doação do material. A presidente da Sociedade de Reprodução Assistida diz que o termo assinado é suficiente para garantir o procedimento, mas algumas clínicas podem pedir reconhecimento de firma “por uma segurança a mais”.
Foi a primeira vez que Eleonora lidou com um caso assim. Além das questões legais, ela diz que ter conhecido Marco ajudou a tratar a situação de forma mais leve. “A gente teve essa oportunidade de conversar antes e vi que ele queria muito. Foi muito importante para eu me tranquilizar de que era isso mesmo, porque alguns médicos podem ficar com receio. Fiquei satisfeita de poder conversar com ele. Foi gratificante”, diz a ginecologista.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.