Ano foi marcado pelo lançamento de biografias de grande qualidade técnica


Em: Variedades No dia: 31 de dezembro de 2020


Barack Obama relembra que Donald Trump disse, certa vez, que um ex-ativista radical deveria ser o autor de Sonhos do Meu Pai, que Obama publicou em 2008, “porque o livro era bom demais para ter sido escrito por alguém com meu calibre intelectual”. Já o cineasta Woody Allen não perdoa sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow, que o acusou de abuso sexual de seus filhos: além de mentalmente instável, ela exibe “carinha de sonsa”. No Brasil, Xuxa contou como foi abusada sexualmente quando ainda era uma menina e Nelson Motta revela um momento hilariante quando um dos bandidos que invadiram sua casa, ao notar sua coleção de discos, perguntou se tinha algum do Phil Collins.

Biografias e autobiografias de figuras renomadas, escritas com brilhantismo e perspicácia, dominaram o mercado editorial brasileiro em 2020 como há muito não acontecia. Figuras polêmicas, como o ex-presidente João Baptista Figueiredo, que preferia o cheiro de cavalos ao do povo, ganharam uma importante revisão histórica – em Me Esqueçam – Figueiredo: A Biografia de uma Presidência (Record), Bernardo Braga Pasqualette traça um minucioso perfil do último general que presidiu o Brasil, entre 1979 e 1985. “É covardia esquecê-lo, a despeito de qualquer vontade sua. Fez muito em um período turbulento. De bom e de ruim”, escreve o autor.

Os bons resultados desse ano, no entanto, seguem um movimento mais antigo. “Minha opinião é que essas vendas vêm crescendo já há um bom tempo”, atesta Luiz Schwarcz, publisher do Grupo Companhia das Letras. “E não creio que a tentação à bisbilhotice das mídias sociais se relacione com o crescimento de literatura de não ficção séria. Ela cobre um espaço que mistura os leitores de ficção e não ficção juntos. Pela qualidade narrativa e de pesquisa. E os livros excepcionais geram mais mercado. Em geral, sou favorável a encontrar os motivos nos livros que saem e em suas qualidades e não em tendências gerais.”

Justamente para quem tem experiência na prática, como os biógrafos Ruy Castro e Lira Neto, a observação é válida. “Mais que um fenômeno recente e instantâneo, penso tratar-se de um processo evolutivo”, comenta Lira, autor de importantes biografias como a de Getúlio Vargas, Castello Branco e Maysa. “Desde a década de 1980, quando mestres como Fernando Morais e Ruy Castro modernizaram o gênero no Brasil, afastando-se então da ideia de monumentalizar ‘grandes homens’ e passando a revelar as imperfeições humanas dos biografados, o fazer biográfico tem evoluído de maneira considerável no País. Constata-se um amadurecimento progressivo no trabalho dos biógrafos, que hoje parecem mais conscientes da necessidade de rigores cada vez maiores no trato e na explicitação de suas fontes de investigação, por exemplo.”

Ainda segundo Lira, certo impressionismo, a tentação pelo meramente anedótico e a firula verbal cederam lugar a contextualizações mais adensadas. “O que não significa a perda do frescor narrativo ou a burocratização do estilo. Ao contrário, o grande desafio passou a ser articular um mergulho mais metódico e responsável nas fontes documentais com a fluência, a precisão, o sabor e a elegância do texto.”

Exemplos não faltam, como o já citado trabalho de Pasqualette sobre o general João Figueiredo e o trabalho de fôlego de Karla Monteiro em Samuel Wainer – O Homem que Estava Lá (Companhia das Letras), minucioso relato sobre o homem que, se de um lado revolucionou o jornalismo brasileiro, de outro era capaz de atropelar conceitos éticos para conseguir o que ambicionava.

“Uma narrativa biográfica só é válida quando revela, por trás da epiderme do texto, um vigoroso trabalho de investigação, uma estrutura sólida, um arcabouço bem definido”, continua Lira Neto. “O detalhe pelo detalhe, por exemplo, perdeu o sentido. A minudência tem que desvelar e propor significados. Também não se trata mais de buscar a suposta ‘verdade dos fatos’, mas de interrogar como e por que este ou aquele episódio passou à história desta ou daquela maneira. Nesse processo, o biógrafo não pode ter a pretensão onisciente de ‘saber tudo tal e qual aconteceu’. Ao contrário, deve ter a humildade e a consciência diante do caráter necessariamente falhado na reconstituição de um fato, inclusive deixando evidente, ao leitor, tanto suas dúvidas quanto as inevitáveis lacunas documentais.”

É o que se observa, por exemplo, em Alexander Hamilton (Intrínseca), monumental biografia do primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos (entre 1789 e 1795), considerado por muitos o mais progressista dos pais fundadores daquela nação – o biógrafo Ron Chernow traça um perfil quase completo de um político de rara habilidade, mas também de um homem marcado por dilemas e insights, e cujas determinadas amizades na adolescência insinuam amores homossexuais, algo que Chernow apenas suspeita, pois provas definitivas, como cartas, desapareceram ou foram rasuradas.

Quando isso não acontece, o biógrafo pode comprometer a própria obra. A americana Holly George-Warren é autora de Janis Joplin – Sua Vida, Sua Música (Seoman) que, no Brasil, ganhou um imprudente subtítulo: A Biografia Definitiva da Mulher Mais Influente da História do Rock. Tal afirmação cai por terra quando o texto dedica poucas páginas à passagem de Joplin pelo Brasil, país pelo qual se apaixonou e onde arrumou namorados, como o roqueiro Sergei, dados não encontrados na biografia.

Falha que se espera encontrar nos livros sobre políticos, desejosos de ocultar determinadas passagens de sua trajetória. Quando isso não acontece, a obra ganha a estatura devida. Em Uma Terra Prometida (Companhia das Letras), primeiro volume de suas memórias, o ex-presidente americano Barack Obama descreve em detalhes sua formação política e momentos marcantes de seu primeiro mandato, como as dificuldades para aprovar sua lei de assistência à saúde e momentos de tensão, quando bate de frente com generais sobre a estratégia militar americana no Afeganistão.

Também é curiosa a descrição de seu relacionamento com Michelle, enfurecida com a ausência do marido na criação das filhas. Em 2004, por exemplo, quando ele concorreu ao Senado Federal, Michelle foi taxativa: “Uma última vez. Mas não conte comigo na campanha. Na verdade, é melhor não contar nem com meu voto”.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.