Abertura de tranporte interestadual abre guerra judicial entre governo e empresas


Em: Economia No dia: 10 de agosto de 2020


O transporte interestadual de ônibus começou a viver uma nova fase de abertura de mercado desde dezembro do ano passado, quando o governo publicou um decreto presidencial para facilitar a entrada de novas empresas no setor, ampliando a concorrência, os destinos de viagens e o preço das tarifas. Nove meses depois do decreto, a mudança começa a mostrar resultados, mas o setor acabou convertido em campo de batalha judicial.

Dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), responsável por regular e fiscalizar o transporte interestadual, apontam que, em nove meses, as mudanças já são alvos de 22 ações judiciais movidas por empresas e associações do setor, medidas que incluem uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). O governo já venceu em 18 ações e foi derrotado em apenas uma. Outras três seguem em tramitação.

O governo evita falar sobre o assunto, mas vê com preocupação as tentativas do setor em derrubar as mudanças. O Ministério da Infraestrutura, que é o principal defensor das mudanças que passaram a vigorar em dezembro, enfrenta um lobby pesado das empresas dentro do Congresso. Elas tentam derrubar o decreto presidencial.

Pelo regime que vigorava até então, as empresas de ônibus atuavam por meio de um “regime de permissão” dado pela ANTT, que exigia a atuação do governo para garantir o equilíbrio dos contratos, regulando as tarifas e os serviços (itinerário e frequência). Com a mudança, não há necessidade de intervenção do poder cedente para manter esse equilíbrio e a tarifa é praticada livremente, com liberdade de itinerário e frequência. A concorrência, portanto, ocorre nos mercados.

O governo alega ainda que a prestação de serviços favorecia a formação de monopólios. O decreto passou a estabelecer que a prestação de serviços não tem mais limites por empresas, aumentando a concorrência criando oportunidades para novos mercados. A atuação passa a se dar por meio de manifestação de interesse, comprovadas as condições mínimas de prestar os serviços. Além disso, os próprios interessados avaliam os riscos e as oportunidades de empreender em determinado trecho. Basicamente, é dessa forma que funciona hoje, por exemplo, a concessão de terminais portuários privados.

Reação

As empresas que atuam no setor, porém, afirmam que as medidas precarizam a prestação de serviços e querem derrubar as mudanças. Como destacou o Broadcast Político, sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado, senadores tentaram deliberar – em votação simbólica – na última quinta-feira (6) um projeto que pode inviabilizar o modelo atual. De autoria do senador Weverton Rocha (PDT-MA) e relatado pelo senador Marcos Rogério (DEM-RO), o projeto de decreto legislativo (PDL) tem a missão específica de derrubar o decreto editado pelo Executivo no fim do ano passado. A votação, que acendeu um alerta no governo, acabou sendo suspensa, mas pode voltar ao plenário nesta semana.

Pelos dados da ANTT, desde que o setor foi aberto, 27 novos destinos já foram aprovados pela agência. O potencial de crescimento do setor é exponencial. O Brasil tem hoje cerca de 40 mil destinos interestaduais em viagens de ônibus, com 187 empresas que atuavam no setor. O número de municípios atendidos por linhas regulares é de 2.060. Segundo levantamento da ANTT, caso todas as autorizações acumuladas na agência entrassem em vigor, o setor viveria uma revolução, com cerca de 90 mil destinos, atuação de 260 empresas e cobertura de 2.585 cidades.

Essa não é a versão das empresas do setor. O diretor executivo da Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiro (Anatrip), Clayton Vidal, afirma que o governo, ao estabelecer que a outorga de prestação regular do serviço seja concedida mediante simples autorização, passa a permitir que as viagens sejam feitas “às margens, portanto, de qualquer controle ou seleção pelo Estado”.

Segundo o executivo da Anatrip, que representa 21 empresas do segmento, o cenário atual permite “a abertura completa desse mercado à iniciativa privada e, consequentemente, a submissão dos usuários ao risco de precarização ou, até mesmo, a paralisação dos referidos serviços, e sem a ampla participação popular na discussão desse assunto e, consequentemente, sem a análise do impacto regulatório, previsto em lei”.

Causa e efeito

A Anatrip enumera diversas consequências que, em seu entendimento, são causadas pelo decreto presidencial, como restrição aos direitos dos usuários, por causa do reflexo direto na qualidade dos serviços prestados; limitação do direito de locomoção dos idosos, das pessoas portadoras de deficiência, e dos estudantes, devido à extinção dos direitos relacionados ao passe livre; e fim do caráter de regularidade do serviço, pois as empresas passarão a realizar as viagens só depois que a lotação assegurar a sua rentabilidade. A associação afirma ainda que a obrigação das empresas de fazerem a contínua renovação de suas frotas de ônibus seria extinta.

Os empresários criticam ainda a afirmação de que promovem um monopólio no setor. Argumentam que, em 2.014, o sistema interestadual era operado por 168 empresas, por meio de 54.766 ligações e transportava 99 milhões de passageiros por ano. Dados de 2018 mostram que o sistema era operado por 217 empresas, com 89.137 ligações e transporte 84 milhões de passageiros. “Embora a demanda de passageiros tenha diminuído cerca de 16%, a oferta de serviço aumentou 62% e a quantidade de operadores, também aumentou cerca de 30%”, diz Clayton Vidal.

A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), que também representa as empresas, declarou que “confia na capacidade de diálogo e construção dos Poderes Legislativo e Executivo em formatar o regime jurídico que atenda aos anseios da sociedade, aos direitos e à segurança dos passageiros”.

Segundo a associação, “o Brasil passa por um momento de enormes desafios e a segurança jurídica e previsibilidade regulatória são valores irrenunciáveis para que haja investimentos e preservação de empregos”.